quarta-feira, 30 de maio de 2007

Roger Taylor


Confesso que nunca fui muito ligado nessas coisas de destino, de sinais. Não vou entrar aqui no mérito da questão, mas todo assunto mais sobrenatural dificilmente ocupa a minha cabeça. Mas algumas situações, quando a gente olha por essa lente mais esotérica (vamos chamá-la assim), fazem um sentido danado.

Tenho um exemplo desses momentos: quando estava conhecendo melhor a Geórgia (minha mulher, ou esposa, se preferir), entre mil conversas, ela falou duas coisas que me deram um estalo e me fizeram acreditar num belo futuro entre nós. Uma delas foi citar uma das piadas do filme Wayne’s World (até o momento, não conhecia nenhuma mulher que fosse ligada naquele tipo de piada). A outra foi dizer que gostava muito da bateria do Roger Taylor. Tudo bem que ela gostava também do John Taylor, excelente baixista gatão do Duran Duran, mas elogiar o RT não era algo que eu estava acostumado a ouvir. Muito menos era uma daquelas coisas que a pessoa fala para querer agradar o quase-namorado baterista. Era sincero.

Bom, como deu para perceber, o homenageado do dia é Roger Taylor, o baterista de uma das maiores bandas de todos os tempos, o Queen.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção na bateria de RT é o quanto ela joga para o time. Ele entendia muito bem do riscado, mas estava sempre ligado na música, nos outros instrumentos e na voz. Sempre. E apesar de tocar numa bateria gigantesca, as suas batidas poderiam ser reproduzidas em qualquer kit de 4 peças. Isso mostra o quanto ele compreendia a estrutura do ritmo, coisa da escola do rock’n’roll clássico, que privilegia tanto o rock quanto o roll – mesmo nas músicas mais retas do Queen, podemos ouvir sempre um balanço.

Outra característica de RT, principalmente nos shows, era a forma como se entregava ao momento. Quando vejo algumas de suas apresentações, fico achando que ele vai morrer no meio de uma passagem, tamanha é a energia que ele carrega nas baquetas. Mas ele sempre dá um jeito de chegar e resolver a música. E o homem nunca economiza nas batidas, deixando o melhor para o final (como fazem muitos bateristas). Com RT, o show já começa a mil por hora. Talvez por isso (e claro, Freddie Mercury) o Queen tenha tido, por anos, o melhor show do planeta.

Além de suas qualidades como baterista, RT ainda cantava para burro. Tinha uma voz meio fanha e rasgada, mas conseguia chegar nas notas mais altas e cuidava de todos os backing vocals do Queen. E cantar (e tocar) junto com Freddie Mercury não é mesmo para qualquer um.

Vamos ao podcast


COMING SOON
(The Game, 1980)
Como deve ser uma levada de música nos toms? Aqui está o gabarito. Já ouvi RT elogiando horrores o som de bateria desse disco. Realmente, a produção desse disco é fabulosa – criou um referencial para todos os discos do Queen. Grande música de um disco melhor ainda.

MUSTAPHA
(Jazz, 1978)
Não mexa no volume – essa mixagem é muito doida de propósito. RT mostra o quanto sabia estruturar as partes de sua bateria de acordo com a música. Note que para cada momento ele usa uma célula específica. Uma coisa que ele sempre fez com maestria foi prender o prato logo após a batida, pontuando os acentos. Aqui ela dá uma aula de como isso deve ser feito.

GET DOWN, MAKE LOVE
(News Of The World, 1977)
Qualquer música em que a bateria não toque o tempo inteiro é sempre muito difícil para o baterista. Quando a bateria pára, e o ritmo continua, a concentração tem que ser dobrada. E essa música é bem o caso. Mas RT toca com perfeição. E a escolha das peças que ele usa nos ataques é de altíssimo nível. Aqui o Queen mostra o talento fabuloso de seus músicos.

UNDER PRESSURE
(Hot Space, 1982)
Uma das características de RT e sempre acentuar o ximbau junto com a batida da caixa (o oposto do que fazia Charlie Watts). Isso dificulta muito tocar as músicas do Queen, pq tem um som a mais que não é nada fácil de reproduzir. Escolhi essa música pela cadência sensacional que possui e pela levada no prato de ataque (outra de suas características), no minuto 12’03” do podcast. David Bowie nunca cantou numa base tão sólida.

DRAGON ATTACK
(The Game, 1980)
Show de bola. Quem me chamou a atenção para essa música foi o meu amigo Marcello Capa, dos Resistores. A batida já é difícil (o ximbau toca todas as notas sem parar), mas RT ainda tira uma onda e acrescenta uns overdubs de bateria, aos 14'57" do podcast. Um ótimo exemplo do poder da cozinha Deacon/Taylor.

GOOD OLD FASHIONED LOVER BOY
(A Day At The Races, 1976)
Uma música meio gay (no sentido Cole Porter do termo) em que a bateria (junto com o piano) dá todo o balanço, além de acompanhar todas as nuances do arranjo. De novo, RT mostra todo o controle que tem da bateria. E o solo de guitarra? Não sou guitarrista, mas considero o Brian May um dos maiores talentos do instrumento. Basta uma nota para que seu som seja imediatamente reconhecido. E curto também o fato de ele ter usado, durante muito anos (quando já existia o sistema sem fio), aquele cabo de guitarra igual ao de telefone.

THE LOSER IN THE END
(Queen II, 1974)
O delay da bateria e sensacional. Talvez a batida inicial e as frases finais sejam as coisas mais técnicas que RT tenha tocado. É pq é uma coisa meio de jazz, com uma sutileza diferente do rock’n’roll, com umas coisas mais sofisticadas . Esse é um bom exemplo de como ele, mesmo com um repertório imenso, jogava para o time e para a música. Ah, ele é o cantor dessa!

DON'T STOP ME NOW
(Jazz, 1978)
A Geórgia (aquela dos parágrafos iniciais) me obrigou a colocar essa música. Mas como não sou pau-mandado (até parece...), escolhi a peça por motivos exclusivamente baterísticos. A energia de RT é impressionante – note como o bumbo toca todas as notas do compasso, no melhor estilo punk rock (26'20" do podcast). Além disso, o coro é sensacional.

SHEER HEART ATTACK
(News Of The World, 1977)
E por falar em energia punk rock, essa é um ótimo exemplo de como o Queen podia soar pesado sem parecer caricato. E isso em 1977. A bateria é bem retona, mas ainda mantém aquele balanço. Gosto muito das marcações que a bateria faz nessa parte (28'51" no podcast). Em uma música com essa velocidade, qualquer derrapada da bateria pode estragar todo o conjunto. Na dúvida, a maioria dos bateristas segue adiante, sem complicação (e inspiração), mas RT chama a responsabilidade e segura as rédeas de uma das músicas mais porradas do grupo.

YOU'RE MY BEST FRIEND
(A Night At The Opera, 1975)

De novo, a dificuldade de se tocar decentemente um shuffle. Gosto da forma com que RT toca essa batida, respirando junto com a música. É um dos maiores hits do grupo, composto pelo baixista. Aliás, o baixo de JD (e eu acho que ele tocou o Fender Rhodes, também) faz toda a diferença.

BRING BACK THAT LEROY BROWN
(Sheer Heart Attack, 1974)
Gosto desse esquema do Queen com músicas e arranjos meio de jazz/cabaré. A parte da bateria é tão precisa que parece ter sido escrita, com todos os acentos bem marcadinhos. Ao longo dos anos eles acertaram ainda mais a fórmula (A Night At The Opera e A Day At The Races), mas eu curto bem essa versão, com banjo, baixo acústico e tudo mais que pede o estilo.

FAT BOTTOMED GIRLS
(Jazz, 1978)
Hit presente em qualquer coletânea do grupo. Gosto muito da forma com que a bateria e o baixo vão segurando a estrofe, para descer a mão na hora do refrão. A virada de RT, aos 39'04" do podcast, é tão simples quanto eficaz. Eu nunca fui muito fã desse som de tambor, mas, para essa virada, a escolha de som foi perfeita.


É isso aí.
abs
Txotxa

sábado, 19 de maio de 2007

Mitch Mitchell


As questões em torno da figura do crítico musical são sempre complicadas. Muitos defendem a idéia de que apenas um músico possui o conhecimento necessário para comentar o trabalho de outro colega. Outros acreditam que apenas o não-músico (jornalista, na maioria dos casos) consegue manter o devido distanciamento para analisar uma obra musical.

A minha posição é a seguinte: acredito no bom senso e na busca sincera pelo conhecimento musical, independente de se tocar ou não um instrumento. Porque já vi muito músico bom falar asneira por falta de um senso crítico mais apurado e racional. Da mesma forma, os jornais e revistas estão cheios de idiotas falando água sem nenhuma propriedade aparente.

Bom, isso tudo para deixar mais claro o que vou dizer agora sobre a arte de Mitch Mitchell (aliás, isso serve para todos os textos que já apareceram neste blog): não é possível entender a bateria de MM sem tentar (ênfase no tentar) tocá-la. Não adianta ler todas as coisas sobre as gravações do Jimi Hendrix Experience, estudar as partituras (se é que existem) de suas batidas, ou assistir aos vários vídeos da época. Nada disso dá a real dimensão da arte desse baixinho nervoso que acompanhou durante alguns anos (os principais) um dos maiores fenômenos que a música já viu.

Eu já toquei várias (várias, mesmo) músicas do grupo e nunca cheguei perto da dinâmica de MM. Talvez por seu profundo interesse pelo jazz, Mitch M. conseguia tocar rápido e suave, com viradas ferozes, dando sempre a impressão de que estava improvisando à medida que a música acontecia. Não era um baterista tradicional de rock. Não estava muito ligado na marcação do tempo, nem na cadência da batida. Ao vivo, então, era um Deus nos acuda (no bom sentido).

Se compararmos os dois principais bateristas de JH (Buddy Miles e MM), vamos ter visões diametralmente opostas sobre ao conceitos de ritmo. BM era uma locomotiva de carga, firme e compassada, focada no percurso. Já MM era um carro esporte voando baixo pela auto-estrada, cortando todo mundo e chegando, sempre, inteiro no destino.

Veja bem, não quero dizer que MM era ruim de tempo. Pelo contrário, mas o tempo para ele era uma coisa mais maleável, que podia (e devia) variar de acordo com a música. Muito da sua noção de ritmo era ligada à guitarra de JH. Tanto que muitas das sessões de gravação começavam apenas com os dois.

Vou falar mais das características de MM como baterista a partir das músicas do podcast de hoje.


Podcast: http://lomez.mypodcast.com/



MANIC DEPRESSION
(Are You Experienced?, 1967)
Essa batida é sensacional! Numa música de 3 tempos, MM consegue criar um clima quase mântrico (existe essa palavra?). A dinâmica com que ele toca o tom e os pratos é muito difícil de se repetir. Acredito que o tamanho mignon de MM acabou definindo o volume de sua bateria. Junte-se isso às técnicas de gravação da época, e temos um som impossível de ser reproduzido. Num dos muitos discos em homenagem à música de JH, lembro bem de uma versão de Manic Depression tocada por Jeff Beck e Seal. Adivinhe a única coisa que ficou devendo?

FREEDOM
(The Cry Of Love, 1970)
Que música f... O bumbo meio deslocado na estrofe é muito doido (mas funciona). Essa formação com Billy Cox no baixo é impressionante, pq o baixo, finalmente, ancora a música. Qualquer baterista que consiga tocar esse arranjo merece o respeito de todos.

KILLING FLOOR
(Jimi Plays Monterey, 1967)
Bem, o que fazer depois de uma introdução de guitarra dessas? Acho que MM segurou bem o rojão e ainda vitaminou o arranjo. Note como ele chega a ficar uns 3 compassos simplesmente solando em cima da música. Já ouvi algumas versões desse clássico de Howlin’ Wolf, mas nenhuma chegou perto desse nível de energia (nem mesmo as de JH). Esse show mostra a banda no auge. Detalhe para a vozinha de Brian Jones na apresentação.

SHE'S SO FINE
(Axis: Bold As Love, 1967)
Música do reclamão Noel Redding (ele também canta). Essa introdução de bateria é perfeita para tirar onda na hora da passagem de som. Gosto muito da forma solta com que MM toca a música. E que solo de guitarra, hein? A música tem um estilo clássico do rock dos anos 60.

LONG HOT SUMMER NIGHT
(Electric Ladyland, 1968)
O meu medo em escolher essa música é que ela faz parte de um disco muito zoneado, do qual participaram desde Steve Winwood e Brian Jones até um motorista de táxi. Por isso, a chance de MM não ter tocado essa bateria é real. Mas, pelo o que ouvi e li a respeito, eu continuo apostando em sua execução. Isso foi o máximo que ele conseguiu chegar perto de uma batida funky. Também com uma estrutura dessa, poucos conseguiriam dar uma consistência maior. Considero essa uma das melhores gravações (apesar do som) de JH.

REMEMBER
(Are You Experienced?, 1967)
De novo, a dinâmica. Ele toca a música inteira na caixa e nos tom, não usa nem o ximbau e nem o prato em nenhuma marcação. De novo, mais uma que eu tentei tocar e levei uma surra. Li que JH havia se inspirado em Otis Redding para compor essa música. Tem tudo a ver, mesmo.

UP FROM THE SKIES
(Axis: Bold As Love, 1967)
Aqui temos o jazzista MM. Ele mostra que tem o controle das vassourinhas, mas não se contenta em marcar a pulsação para os colegas. Gosto muito da forma como ele faz viradas em diferentes tempos e climas ao longo dessa música. Música excelente de um disco excelente. Esse som de bateria eu considero algo bem perto da perfeição.

CROSSTOWN TRAFFIC
(Electric Ladyland, 1968)
A música começa com o pé na porta. Nenhuma das versões que já ouvi dessa música chega perto do clima funky dela. Note como a bateria de MM está sempre um pouco atrasada em relação à batida da estrofe. Se essa gravação fosse realizada por Buddy Miles, certamente, seria mais conhecida no meio baterístico (não sei...).

HIGHWAY CHILE
(Are You Experienced?, 1967)

Sempre falo disso em quase todas as postagens: não é nada fácil tocar essas batidas meio R&B, meio shuffle. Ainda mais quando ela vai mudando o tempo todo, como nesse exemplo. Acho a execução de MM impecável, mesmo com o erro engraçadão que acontece no solo de JH. Note no minuto 26’22” do podcast com a caixa some da música por uns dois compassos. A baqueta dele deve ter caído, ou qualquer coisa do tipo. Mas a bateria está tão em cima, que eles acharam (com razão) melhor nem mexer.

BOLD AS LOVE
(Axis: Bold As Love, 1967)
Balada belíssima com letra doidíssima. Gosto muito da forma como MM vai crescendo com a bateria ao longo da música. Considero a batida meio suspensa do refrão a mais clássica da cozinha Mitchell/Redding. O Pretenders fez uma versão dessa músicas, mas não conseguiu o mesmo balanço – e olhe que o baterista deles é sensacional.

CAN YOU SEE ME
(Jimi Plays Monterey, 1967)
De novo, o pé na porta ao invés da campainha. Do mesmo impressionante show de Killing Floor. Nem tenho muito o que dizer, apenas que se eu estivesse escalado para tocar depois dessa turma, fingiria uma dor de barriga e voltaria para casa. Sei que o The Who tocou no mesmo festival (não sei se foi na mesma noite), mas a parada deve ter sido feia...

SPANISH CASTLE MAGIC
(Axis: Bold As Love, 1967)
Talvez pelas paradas da música, MM não tenha alucinado tanto como de costume. Note como a batida dessa música é a mesma que de Bold As Love. Esse clima é puro funky. Experimente acelerar o andamento e vc terá uma base para qualquer música de James Brown. Gosto muito da forma bem estruturada dessa bateria, principalmente o bumbo nas estrofes.

FIRE
(Are You Experienced?, 1967)
Se tivesse que escolher apenas uma músicas para mostrar o quanto MM era sensacional, escolheria essa. Para cada uma das paradas que a música faz, a bateria vem com algo novo e extraordinário. Nenhuma banda (ou baterista) conseguiu chegar perto desse misto de agressividade e balanço.

MAY THIS BE LOVE
(Are You Experienced?, 1967)
Para encerrar, uma experiência de estéreo bem bacana. Note como a bateria vai mudando de canal ao longo da música. Sensacional...

valeu
Txotxa

terça-feira, 15 de maio de 2007

Topper Headon


Eu fui um dos muitos que conheceram o The Clash por meio daquelas coletâneas de rock dos anos 80. Mesmo sem entender um verso sequer da música (ou mesmo a sua estrutura), meus amigos e eu dançávamos loucamente ao som de “Should I Stay Or Should I Go” nas festinhas da escola.

Só fui compreender melhor o Clash enquanto grupo (com discografia e história próprias) quando estava no 2º grau. O Carlos, que é meu amigo e membro do Prot(o),
falava sem parar o quanto esse grupo era o melhor de todos os tempos. De tanto ouvir a sua conversa, acabei comprando o vinil do “London Calling”. Ouvi o disco, entendi mais algumas coisas (não tudo, claro) e adorei as músicas. Mas continuava ainda sem entender a real grandeza do Clash.

Precisou de mais alguns anos e de um convite para me juntar ao Clash City Rockers (projeto do meu patrão e amigo Philippe Seabra, da Plebe Rude)
para que o quebra-cabeça começasse a fazer sentido. Percebi que uma das coisas que tornava o The Clash fora do comum era a capacidade do grupo de tocar e entender vários estilos musicais. Não só isso, mas, principalmente, eles conseguiam imprimir a forte personalidade musical do grupo em todos esses estilos, sem perder de vista a tradição.

Não quero desmerecer o talento de J. Strummer e cia (coisa impossível de se fazer), mas eu acho que boa parte dessa fluência musical do Clash é de responsabilidade do super-baterista Topper Headon, o homenageado do dia.

Topper Headon não é da primeira formação do Clash, mas deu corpo e alma para o período clássico da banda. Ele entrou logo após o lançamento do 1º disco e só saiu depois da gravação do último. Na verdade, parece até que ele teria sido demitido, já que os colegas não agüentavam mais o vício em heroína de TH. Uma pena...

De qualquer forma, o talento de TH está acima de qualquer problema que ele possa ter tido nos anos em que foi o baterista do Clash. Sua perícia musical não se restringia apenas às baquetas. É dele, por exemplo, a composição, o arranjo e a execução (bateria, baixo e piano) do sucesso “Rock The Casbah”.

Sua noção de tempo era impecável. As baterias de TH sempre soavam muitíssimo bem no estúdio, com dinâmica e cadência inéditas nos bateristas de punk rock da época. Talvez pelo vício (não sei), TH nunca foi um cara de muita força na bateria. Sua pegada era firme, claro, mas não tinha o apelo físico de muitos de seus contemporâneos. Mesmo assim, sua batida era suficientemente empolgante para dar fama aos shows do Clash. Aliás, numa entrevista, Joe Strummer afirmou “que uma banda é tão boa quanto o seu baterista“ (algo do tipo), listando as qualidades de TH como músico. Não quero puxar a sardinha para a minha turma, mas concordo com JS em gênero, número e grau.

Vou tentar explicar melhor a minha admiração por TH a partir da seleção musical dos seus tempos de The Clash.


Vamos lá...

Podcast: http://lomez.mypodcast.com/


ATOM TAN
(Combat Rock, 1982)
A bateria tem um clima de “crescendo constante” que é sensacional. Normalmente, eu penso, o baterista iria tocar o tempo dobrado, seguindo a guitarra, num clima meio Rolling Stones. Mas a opção pelo half time de TH fez toda a diferença. Dá uma sensação (pelo menos para mim) da batida do Bo Diddley. Grande música!

RADIO CLASH
(Super Black Market Clash, 1980)
Aqui TH mostra o domínio da linguagem do funk. Ele consegue manter a batida e ainda preenchê-la de acentos – a peteca não cai nunca. Gosto muito dos efeitos e das pausas da bateria. Já toquei essa música algumas vezes, mas a minha versão sai cheia de buracos...

STRAIGHT TO HELL
(Combat Rock, 1982)
Uma aula de composição para a bateria. São duas baterias que se completam o tempo todo. Dá para notar umas 4 linhas diferentes ao longo da música. Nem consigo imaginar a dificuldade de gravar uma bateria depois da outra, sem perder o tempo e a dinâmica de cada uma das partes. E ainda mais numa música como essa, cheia de climas diferentes. Se tirarmos todos os outros instrumentos da jogada, a música ainda fica de pé apenas com TH e JS. Isso é estrutura e o resto é brincadeira...

TOMMY GUN
(Give 'Em Enough Rope, 1978)

Por falar em estrutura, mais um exemplo de como TH conseguia pensar em várias partes para a sua bateria, sem nunca esquecer a sua função principal: manter a batida firme para uma banda de rock. De novo, pelo menos umas 4 partes diferentes de bateria. O Clash City Rockers fez um show nesse domingo e tocamos, com o mesmo arranjo, Tommy Gun. Confesso que é a hora em que eu suo a camisa para fazer jus a essa gravação.

ARMAGIDEON TIME
(Black Market Clash, 1980)

Não me lembro de ouvir alguém tocar reggae dessa forma. Toda a estrutura clássica está lá, mas tem um punhado de notas a mais que fazem uma diferença absurda. TH tinha o desprendimento necessário para inventar e ousar em cima de uma batida quase dogmática. Qualquer baterista que tenha aprendido (de verdade) o reggae jamaicano não consegue tocar dessa forma. São muitas batidas “fora do lugar”, muitas viradas estranhas ao estilo... E ainda assim, a coisa toda soa perfeitamente “roots”.

DEATH OR GLORY
(London Calling, 1979)
Clássico de um dos melhores discos de todos os tempos. Acho interessantíssima a escolha de TH em não tocar essa música do jeitão hard rock, com o ximbau aberto (principalmente na hora refrão). A introdução (e a parte do meio) é uma coisa fora do comum – ele vai construindo a batida aos poucos até chegar ao topo da música. Em homenagem aos meus amigos Pedro, do Prot(o)
e Rafa (Bois de Gerião), vou indicar um ótimo exemplo de como o baixista pode fazer TODA a diferença. Repare que o baixo de P. Simonon vem seguindo a idéia da introdução (a partir de 21'22" no podcast) até o momento em que muda a linha e leva a música para um outro caminho (21'50").

WASHINGTON BULLETS
(Sandinista!, 1980)
TH mostra como se deve tocar o ximbau. O ritmo dessa música é meio complicadinho, porque está cheio de pequenos acentos na batida (que devem permanecer pequenos). Além disso, a música faz várias paradas que, normalmente, são prato cheio para o baterista voltar com o tempo adiantando. É claro que com TH não vamos ver nem ouvir coisas desse tipo. Não é à toa que um dos produtores do Clash o apelidou de “Human Drum Machine” (no bom sentido, é claro).

JULIE'S BEEN WORKING FOR THE DRUG SQUAD
(Give 'em Enough Rope, 1978)
Só toca esse balanço quem compreende bem o ROLL que nasceu junto com o ROCK. Eu sempre achei que o baixo (não sei se é o PS que toca) “apanha” um pouco do clima swing desse tempo. Gosto muito também dos sons dos tambores nessa música – não entendo pq TH sempre teve um som de tom tão fechado ao longo da carreira. Podia tanto ser sempre assim...

HATEFUL
(London Calling, 1979)
Adoro essa divisão matemática da bateria para seguir as guitarras e a melodia. É uma bateria que parece fácil, mas não é. Cada parte da música tem uma batida diferente, com instrumentos diferentes. Essa é um bom exemplo da dinâmica de TH na hora de tocar. À medida que a música vai mudando, a baterista segue junto, ajudando a mudança de clima e de estrutura.


abs
Txotxa

terça-feira, 8 de maio de 2007

Bernard Purdie



Vou fazer aqui uma analogia bem safada: imagine que o tempo de uma música é um cavalo selvagem, daqueles indomáveis, que levam uma eternidade para serem enquadrados no esquema da sela e do cabresto. Ao longo dos anos, vários bateristas conseguiram controlar esses animais. A maioria, eu penso, apelando sempre para o chicote (ou metrônomo). Esse processo é realmente eficaz, mas sempre nos deixa com aquela sensação de que a qualquer momento o bicho-tempo vai nos dar um coice na cara e sair em disparada.

Brincadeiras a parte, queria falar hoje de um baterista que conseguiu amansar a fera do tempo sem precisar levantar um dedo sequer. Esse músico se chama Bernard Purdie.

Tive a oportunidade única de entrevistá-lo para o meu projeto final de graduação. Estava tão apavorado diante dele, que nem me lembro do que perguntei. Apesar disso, o resultado foi surpreendente para mim, pois havia lido coisas a seu respeito que indicavam sempre uma certa malice, um excesso de ganância e uma falta de educação. Mas nesse dia, BP me tratou com paciência, cordialidade e uma certa camaradagem. Tive sorte...

BP é considerado um dos bateristas com mais gravações de sucesso no currículo. Nos anos 60 e 70 (principalmente), 1 em cada 5 hits das paradas de R&B norte-americana tinha a batida de Bernard na fita. Ele já gravou com gente do naipe de Aretha Franklin, Steely Dan, Marvin Gaye, B.B. King, Issac Hayes, Miles Davis (isso mesmo!), Quincy Jones, Roberta Flack, Nina Simone, Cat Stevens, entre outros.

E é aí que começa um pouco da polêmica sobre os seus feitos. Por exemplo, ele jura de pé junto que gravou a maioria das baterias dos Beatles nos primeiros anos de EUA do grupo. Isso nunca foi provado, e eu duvido muito que vá ser algum dia, já que podemos ouvir as particularidades de Ringo em todos esses discos.

Outra coisa que ele faz muito bem é o marketing pessoal. Hoje, ele é conhecido como o criador do estilo acid jazz (o que quer que isso queira dizer) e faz questão de lançar discos com esse título. Nos anos 70, quando gravou com o Steely Dan, a dupla Fagen e Brecker não entendia nada quando ele colocava ao lado da bateria, no estúdio, um cartaz gigante dizendo Bernard “The Hitmaker” Purdie.

Bom, deixando de lado essas (e outras) polêmicas, BP é um dos gênios da bateria. Possui um senso rítmico tão natural que passa a idéia de que a coisa é muito mais simples do que parece. Seu toque é firme e poderoso, mas não ataca os ouvidos e nem atrapalha os outros instrumentos. Ele consegue tocar nos andamentos lentos (mais difíceis) com a mesma desenvoltura que comanda uma banda de 15 instrumentos a 1000 BPM. E o seu backbeat (aquilo que as pessoas instintivamente acompanham com as palmas) é um dos mais consistentes da história da música.

Para encerrar, mais uma historinha...

Logo nos meus primeiros anos de bateria, tinha um primo meu que almoçava lá em casa todos os dias. Como eu gostava muito dele, a gente ficava conversando sobre várias coisas enquanto a comida assentava. Numa dessas conversas, ele tentou me convencer a largar as baquetas, já que, com a expansão da bateria eletrônica (programada), os bateristas estariam com os dias contados. Mesmo sem entender bem o porquê, sabia que ele estava falando asneira.

Se na época eu conhecesse Bernard Purdie, poderia calar a boca do primo falastrão simplesmente mostrando algumas batidas do “Faraó do Funky”. Sério, mesmo depois de tantos avanços na área dos ritmos eletrônicos, ninguém chegou perto do swing puro de BP. A prova disso é que caras modernos como Beck nem perdem tempo tentando programar as batidas de BP: vão direto na fonte, copiando e colando (e no caso do Beck, dando os devidos créditos).

Vamos à seleção de hoje:

RESPECT
Aretha Franklin (Aretha Live at Fillmore West, 1971)
esse é um bom exemplo de como Purdie “empurra” a banda a todo vapor. gosto muito da parte em que a música dá uma abaixada para Aretha F. saudar o público (é a 1ª música do show). eu roubei de Purdie o jeito de acentuar a última batida antes de a música cair na dinâmica.

MEMPHIS SOUL STEW
King Curtis (Live at Fillmore West, 1971)
essa gravação é do mesmo show acima, com a banda de apoio de AF criando o clima de abertura. e que banda! é como se fosse o dream team da soul music dos anos 70. não vou listar os nomes, já que King Curtis (sax e diretor musical) vai apresentando o pessoal ao longo da canção. a música é um clássico que dá a receita de como preparar um autêntico “caldo soul de Memphis” (mais ou menos assim). outra coisa que tento copiar de BP é o ximbau que ele faz nessa música.

THE CAVES OF ALTAMIRA
Steely Dan (The Royal Scam, 1976)
aqui BP é colocado à prova pelos caras mais chatos para gravar que já existiram: Donald Fagen, Walter Brecker e o produtor Gary Katz. já li várias coisas sobre esse time. eram caras meticulosos ao extremo, que não toleravam (no caso dos bateristas) qualquer variação de tempo ou de dinâmica. já vi grandes bateristas dizerem que a coisa era feia com esses 3 – nenhum detalhe passava despercebido. mas o mais assustador é que BD gravava tudo de 1ª, super rápido, enquanto eles ainda acertavam o som da bateria.
essa música é um exemplo de como ele entendia o tempo como ninguém.

ROCK STEADY
Aretha Franklin (Young, Gifted and Black, 1971)
clássico dos clássicos. isso é o gabarito para qualquer coisa que queira soar funky. o baixo, a percussão, o órgão, os sopros, a voz, tudo se encaixa perfeitamente. a parada de bateria é uma coisa de outro mundo. e de novo, o ximbau...

SPANISH HARLEM
Aretha Franklin (Single, 1971)
mais uma de AF (nunca é demais, né?). me amarro muito nesse arranjo. é engraçado que eles tentaram dar um clima meio hispânico, mas não conseguiram deixar de lado a batida sólida e funky da bateria e do baixo. preste atenção na cadência da bateria. ouça como ele toca o tempo todo, com várias notas em vários tambores, mas não perde nunca o balanço.

HOME AT LAST
Steely Dan (Aja, 1977)
essa batida é conhecida como Purdie Shuffle. no documentário da gravação desse disco, BP explica, com um certo desdém e malice, que os Steely Dans não sabiam bem como queriam a batida. foi quando Berrnard disse: “vou fazer o Purdie Shuffle e vcs vão ficar mais que satisfeitos”. isso é que é autoconfiança. essa batida, eu acredito, deve ter influenciado bastante a bateria de “Fool In The Rain”, do Led Zeppelin.

ATTICA
Bernard "Pretty" Purdie (Purdie Good, 1971)
aqui uma das versões da banda de Purdie. a música é bem contagiante. a bateria já é bem mais presente do que nas gravações em que BP apenas “acompanhava” os outros.

Podcast: http://lomez.mypodcast.com/


abs
Txotxa

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Sly Dunbar


Seu nome vem sempre atrelado ao do parceiro Robbie Shakespeare, baixista com quem toca, produz, mixa e remixa há mais de mais 30 anos. O duo jamaicano Sly & Robbie é mundialmente conhecido como a maior cozinha (formação de baixo e bateria) de reggae de todos os tempos. Pela qualidade dos dois, eu tiraria o reggae do título e deixaria assim: "Uma das Melhores Cozinhas de Todos os Tempos".

Os dois já tocaram em mais de 200 mil gravações (essa conta eu tirei do All Music), acompanhando gente como Bob Dylan, Rolling Stones, Gilberto Gil, Joe Cocker, Cindy Lauper, além dos principais nomes do reggae jamaicano. Como produtores, trabalharam com uma outra penca de artistas.

Na minha opinião, o que faz os dois tão especiais é que sempre tocam para a música. Não querem mostrar tudo o que sabem em 3’ de canção. O som é sempre firme, com pegada, no tempo, sem falhas e com muita propriedade. E para melhorar o que já é excelente, os dois entendem horrores de colocação de baixo e bateria (e guitarra, e voz, e teclados, e sopros...) numa sessão. Podem reparar: nenhuma de suas gravações falta ou sobra som. Os graves, médios e agudos estão sempre nos lugares corretos, os timbres sempre funcionam perfeitamente.

Além de todas essas qualidades musicais, Sly Dunbar, principalmente, é um profundo conhecedor dos equipamentos eletrônicos. Ele foi um dos primeiros a usar as Simmons Drums sem preconceito, apostando certo nas possibilidades sonoras dessas novas tecnologias. Até onde sei, SD continua assim. Mas quando é necessário, sabe tocar um kit acústico como poucos.

Quando comecei a tentar tocar reggae (tento até hoje), conhecia o Sly & Robbie apenas de nome, ouvindo as entrevistas dos Paralamas. Comprei, com atraso, o disco “Rhythm Killers” e fiquei meio de cara. Não tinha nada que me lembrasse o som de Bob Marley (a minha referência de reggae na época). Era uma coisa moderna, forte para burro, com a uma batida de hip-hop e funk. E hoje, 15 anos depois do dia que comprei esse disco, toda vez que escuto alguma coisa dos dois, qualquer coisa, tenho ainda a mesma sensação: uma batida muito estruturada, que é cerebral sem perder uma gota de inspiração, e que só é possível por algum acidente da natureza.

Para o podcast de hoje, escolhi alguns momentos da dupla Sly & Robbie tocando com alguns artistas que, de certa forma, foram influenciados pelo som da dupla.

Vamos à seleção:

NIGHTCLUBBING
Grace Jones (Nightclubbing, 1981)
essa versão para a música de Iggy Pop é maneiríssima. o que me impressiona é a bateria manter a mesma batida durante toda a música. e olhe que a batida é meio chatinha, com uma mudança no final do compasso. é coisa de quem sabe de cor a essência don ritmo. não deixa sobrar e nem faltar nada.

YOU'LL NEVER KNOW
Gregory Isaacs (Sly & Robbie Present Gregory Isaacs, 1973)
para mim, essa é uma das músicas mais felizes do mundo. de novo, a bateria entra num mantra e vai embora. o baixo (e que baixo!) ainda dá umas variadas, mas a bateria segue firme. já toquei essa música algumas vezes e sempre estrago tudo, dando uma virada sem necessidade. como disse anteriormente, tocar como SD é para quem pode, e não para quem quer.

YOUTH
Black Uhuru (The Dub Factor, 1983)
aqui já entra a onda do DUB. os dois amarraram o som do Black Uhuru de tal forma que acabaram influenciando a forma de composição do grupo. gosto dessa música pela caixa, principalmente, que entra e sai, volta com delay, sempre com a mesma dinâmica. e o bongô (que eu acho que é tocado por SD com a baqueta) é sensacional.

RING OF FIRE
Grace Jones (Private Life: The Compass Point Sessions, 1982)
se alguém souber tocar a introdução da bateria, por favor, me ensine. não consigo nem chegar perto da dinâmica entre as peças. a versão para esse country é fantástica (principalmente a guitarra e a voz). e o clima de ensaio é sensacional. desesperador (pq faz parecer fácil tocar desse jeito), mas sensacional.

(YOU GOTTA WALK) DON'T LOOK BACK
Peter Tosh (Bush Doctor, 1978)
música muito maneira e alegre da carreira rebelde de Peter Tosh. Mick Jagger divide os vocais com ele. nas primeiras semanas de Maskavo Roots (meu grupo nos anos 90), tentamos tocar essa música. os outros conseguiram, mas eu fiquei devendo. até hoje não consigo reproduzir a dinâmica entre bumbo, caixa e, principalmente, ximbau. acabo sempre tocando um country safado ou um shuffle capenga.

ASSAULT ON STATION 5
Sly & Robbie (Reggae Greats: A Dub Experience, 1985)
faz parte de um dos discos solo da dupla. coloquei essa versão mais pelos efeitos – gosto muito das palminhas. e o andamento bem para frente é bem legal. serve também para mostrar o quanto eles entendiam de mixagem.

"MOSES" THE PROPHET
Peter Tosh (Bush Doctor, 1978)
do disco clássico de Peter Tosh. apesar da flautinha doida e da letra, adoro essa música. a bateria é cheia de detalhes – reparem como ele alterna o timbale (mais agudo) com o tom (grave). e SD faz soar muito natural. é um bom exemplo de como a sua bateria é elaborada e, ainda assim, cheia de feeling. me amarro muito também na batida do bridge instrumental.

Valeu
Txotxa