terça-feira, 29 de abril de 2008

Coletânea, vol. 4

Mais uma seleção para começar bem a semana...


GLENN KOTCHE
"Walken"
Wilco (Sky Blue Sky, 2007)
Confesso que o Wilco sempre ocupou pouquíssimo espaço na minha cabeça. Nos anos 90 existia um bando de grupos legais que eu só conhecia de nome. Eram bandas sempre elogiadas, consideradas extremamente cool, e o Wilco era uma dessas. E como eu nessa época ouvia coisas mais antigas, deixei essa música de lado, já que não dava conta de acompanhar as mudanças no rock. O fato é que dez anos depois, assisti a um vídeo do baterista Glenn Kotche (que nem é o original do Wilco) e fiquei de cara. Bom, fui atrás da banda, claro, e me amarrei no que ouvi. Essa música é do último disco deles. Gosto muito da forma como a bateria entra no clima do arranjo (que é sensacional) sem chamar muita atenção.


RICK BUCKER
"Going Underground"
The Jam – Going Underground (Single), 1980
Essa introdução me quebrou a cabeça por muito tempo. Não acertava de jeito nenhum a contagem desse troço. Acho essa bateria uma das coisas mais maneiras que o rock já produziu (e a música também). Reparem como ela vai mudando de acordo com o arranjo – na estrofe toca uma coisa, no refrão outra, no bridge outra diferente. RB é um baterista de mão cheia. Todas as baterias do Jam, desde o 1º single, soam sempre muitíssimo bem. Nota 10! Uma das melhores bandas de todos os tempos.


BILLY COBHAM
"Celestial Terrestrial Commuters"
The Mahavishnu Orchestra – Birds of Fire, 1972
O impacto causado por Billy Cobham entre os bateristas nos anos 70 foi algo assustador (pelo menos já li mil baterista geniais falando exatamente isso). Não só pelo seu tipo físico (forte igual a um touro, posso dizer, já que o vi bem de perto em uma clínica realizada na Escola de Música, há uns 12 anos), mas BC sempre foi o mais próximo que um baterista conseguiu chegar de um super-herói. Sua capacidade musical aplicada à bateria, em especial com o Mahavishnu, permanece como um dos pontos de transição da bateria moderna. Nunca ninguém havia tocado desse jeito, com tanta força, com tanta velocidade, com tanta técnica e com tanto virtuosismo. Escolhi essa música pq, além de muito maneira, mostra bem a categoria de BC, que passeia por todas as partes (dificílimas, por sinal) sem perder o rebolado.



BENGT LAGERBERG
"The Boys Are Back In Town"
The Cardigans – The Other Side Of The Moon, 1994
São muito conhecidas as versões do Cardigans para duas músicas do Black Sabbath. Nos dois casos, eles conseguiram uma coisa que é o sonho de qualquer banda que se arrisque a fazer um cover: criar uma coisa nova, original, mas sem perder o norte do som original. O único problema, ao meu ver, é que, no processo, eles tiram todo e qualquer traço de macheza que a música um dia teve (hahaha!). Sério, isso incomoda um pouco. E o que dizer então dessa versão para o clássico do Thin Lizzy? Bom, de novo, deram uma esterilizada no som do grupo irlandês, mas, por outro lado, deram uma solução bacana para o balanço e para a métrica da melodia. Independente disso tudo, o Cardigans é uma banda fodassa, e o baterista, excelente – excelente, mesmo. Toca simples, mas tem um arsenal de sutilezas que de vez em quando entram em cena e levam a música para outro lugar.



GREGG BISSONETTE
"Two Fools A Minute"
David Lee Roth – Skyscraper, 1988
Bom, se o assunto antes era um som de mulherzinha (rs), agora a coisa muda de figura. Esse foi um dos discos que mais ouvi na vida. Quer dizer, pelo menos durante o último ano do meu 2º grau. Mesmo com tudo de ruim que a figura de David Lee Roth possa sugerir para alguns, uma coisa é certa: ele canta muito e sua ignorância é genuína! E a banda desse disco é sensacional (na verdade, é a mesma do disco anterior). É curioso o quanto o rock de hoje não comporta esse tipo de excesso instrumental. Imagine uma banda em que cada um dos músicos tem um espaço garantido para solo, independente da composição? O único lugar que isso ainda persiste é no nicho nu-instrumental-fusion-progressivo de troços como Dream Theater e tal. Mas esse tipo de som deixou de ter ligação com o rock’n’roll há muito tempo.
Por um lado, é uma pena que as bandas de hoje, muitas delas, simplesmente tenham deixado de lado essa coisa saudável de querer ser um bom instrumentista (com limites, é claro). Às vezes, conta mais pontos ter um visual bacana na bateria do que saber bater um pé depois do outro. O fato é que Gregg Bissonnette (junto com Billie Sheehan e Steve Vai) tinham musicalidade de sobra – e um dos piores cortes de cabelo que a MTV já exibiu. Mas a potência sonora de GB é avassaladora. Até hoje, 20 anos depois, ele é firme igual a uma rocha, além de ser um dos bateristas mais requisitados em estúdio. Para se ter idéia de sua competência, o próprio Stewart Copeland contrata os serviços de GB para gravar as suas trilhas sonoras.



FRANK BEARD
"La Grange"
ZZ Top – Tres Hombres, 1973
Dando seqüência à sessão macheza, aqui vai um grupo que melhor representa o termo “música de homem” (termo de sob licença do amigo Elcio Jr.). Essa música é bem conhecida e traz o estilo boogie de John Lee Hooker na veia. O baterista FB é um cara bem discreto, mas nessa gravação mostra o quanto sabe de shuffle (essa batida é quase impossível de ser tocada com essa fluência). Aliás, uma de suas viradas (a que antecede o solo de guitarra) foi eleita uma das 10 melhores dos anos 70 pelos editores da revista Modern Drummer. Essa é para bater o pé e quebrar a garrafa de cerveja na cara do vizinho de mesa.



LEVON HELM
"Mystery Train"
The Band (with Paul Butterfield) – The Last Waltz, 1978
Isso aqui é o gabarito de como a música do sul dos EUA deve ser tocada. Apesar de 3/4 do The Band serem canadenses, eles entendiam bastante do riscado (muito graças ao grande Levon Helm, que era americano). A gravação desse show, feita por Martin Scorcese, é uma das coisas mais maneiras que já vi. Recomendo para quem estiver de bobeira no site da Americanas (custa míseros R$ 19,00). Aqui, o grupo estava fechando as portas do negócio (pelo menos na formação original), mas ainda segurava o rojão como ninguém. E Levon Helm, que aliás é um dos cantores dessa música (e de muitas outras), passeia, acertando a dinâmica e a cadência para os colegas. Nem mesmo a versão do rei Elvis Presley possui essa crueza e esse balanço.



JEFF PORCARO
"Gaucho"
Steely Dan – Gaucho, 1980
Esse é um dos caras mais reverenciados na comunidade baterística. Além de membro do Toto (aquele super grupo meio brega), JP gravou com uma centena de estrelas nos anos 70 e 80. Escolhi essa gravação pq acho que mostra bem algumas de suas principais características: um pocket profundo (aquela coisa de segurar a batida, de tocar mais para trás do compasso); um som de ximbau fabuloso; e uma jeito muito macio de resolver todas as passagens que a o arranjo exige. Esse disco do Steely Dan é meio palha, mas essa música meio que se salva. Já a performance de JP está no nível das melhores coisas que ele já gravou.



NDUGU CHANCLER
"Billie Jean"
Michael Jackson – Thriller, 1982
Sei que todos já ouviram essa música pelos menos umas 200 vezes, mas vou propor aqui uma outra perspectiva aos ouvidos. Concentrem-se apenas na bateria. O tempo todo, fiquem ligados na forma como a bateria de NC mantém-se cadenciada, como se fosse uma máquina (no melhor sentido da comparação). Tocar isso, desse jeito, com essa galera pela frente (Michael Jackson e Quincy Jones) é um dos maiores desafios que um músico pode encontrar pela frente. E Ndugu se saiu tão bem que essa gravação é considerada sinônimo de perfeição. Sério, qualquer elogio é pequeno perto do que fez o homem nessa sessão. Não é à toa que Thriller é um dos maiores discos de todos os tempos.
E para quem se lembra daquela história (http://txotxa.blogspot.com/2007/05/bernard-purdie.html) sobre aquele meu primo que me garantia que a bateria eletrônica iria tomar o lugar dos bateristas, incluo essa música também na jogada.


MICKY WALLER
"Maggie May"
Rod Stewart – Every Picture Tells A Story, 1971
E como estamos nessa onda de caras que tocam para a música, aqui vai um ótimo exemplo: Micky Waller. Confesso que nunca ouvi falar dele. Nunca, mesmo. Mas fui atrás das coisas que ele gravou e vi que várias estão na estante lá de casa. Escolhi essa música do bom Rod Stewart, antes de ele virar o que virou, pq tem uma batida bem simples, quase Charlie Watts (só que com mais vitamina). Reparem como MW toca o ximbau poucas vezes, e como isso não atrapalha em nada o clima da música. De novo, aquela idéia de que o violão facilita muito a vida do baterista. Um clima desses, aliás, Rod Stewart nunca mais conseguiu em nenhuma de seus discos.



DAVID LOVERING
"Bone Machine"
Pixies – Surfer Rosa, 1988

Pixies é uma banda que eu só fui entender há pouco tempo. Apesar de muitos dos meus amigos adorarem, eu nunca tive muita simpatia pelas músicas. Mas ouvindo com o coração aberto, sem as dúvidas de anos atrás (hehe), percebi o quanto as composições são fodas. O guitarrista J. Santiago eu já sabia que era excelente, pq o Carlos (do Prot(o)) sempre o elogiou. Mas o baterista David Lovering nunca havia me chamado muito a atenção – pelo menos até eu ouvir essa música. Fiquei muito de cara com a construção dessa bateria, que parte de um princípio bem simples: tocar o backbeat no tempos 1 e 3, ao invés dos tradicionais 2 e 4. Aliás, várias músicas dos Pixies têm essa onda de tempo deslocado, que nos joga meio para fora da batida. Muito bom esse disco (e todos os outros aliás). Um fato curioso que descobri ao procurar uma foto de DL é que ele é um mágico de respeito. Mágico!!! Vai entender...



TERRY CHAMBERS
"English Roundabout"
XTC – English Settlement, 1982

Já falei isso algumas vezes nesse blog, mas o cara que consegue compor e tocar uma música nesses compassos de 5 e 7 tempos e ainda deixá-la macia aos ouvidos é alguém para quem eu tiro o chapéu – no melhor estilo Raul Gil (hahaha!). E essa música é exatamente o caso. Essa banda, aliás, é de uma categoria e de uma competência impressionantes. Mr. Seabra (Philippe) foi quem me apresentou esse som, e, desde então, o XTC tornou-se uma referência absoluta para arranjo e gravação para mim. Esse disco é a prova disso. Não há nenhuma nota fora do lugar, nenhuma redundância, nenhum timbre mais ou menos. Num certo sentido, é perfeito. Assim como essa gravação, que, mesmo tocada no tal compasso de 5 tempos (conte aí nos dedos e sinta o clima) tem um balanço fenomenal. E ainda com uma pegada forte de reggae! Impressionante, mesmo. Lendo sobre o XTC, descobri que Terry Chambers gravou os cinco primeiros discos da banda, além de ser um dos membros fundadores. E ainda achei isso aqui na Wikipedia: Terry is widely regarded in drumming circles as one of the most innovative and also most underrated drummers of his time. He is now a business owner in the construction industry, and is no longer involved in the music industry himself. Legal e deprê, né?



GARY MALLABER
"Everyone"
Van Morrison – Moondance, 1970
Devo muito a uma dupla de irmãos que me ajudou diminuir a orelha de burro musical. Quando tocava com os irmãos Beto e Ju, no Beto Só e os Solitários Incríveis, fizemos um show acústico que tinha no repertório uma música do Van Morison (“Crazy Love”, se não me engano). Na época, só conhecia um disco dele com uns standards de jazz. Achava legal, mas não chegava nem perto, descobriria logo em seguida, das coisas que ele gravou no começo dos anos 70. Esse disco, aliás, é uma obra prima. E ouvindo os outros que vieram na seqüência (“His Band And The Street Choir”, “Tupelo Honey” e “Saint Dominic's Preview”), percebi que, além de fodassos, todos tinham, na sua maioria, uma batida bem funky e cheia de swing. E quando fui checar o baterista, descobri que Gary Mallaber havia gravado 90% delas. Daí, foi como se eu tivesse descoberto o mapa da mina GM: ele gravou com Bruce Springsteen, Steve Miller Band (era membro do grupo), Jackson Browne, Beach Boys, Bonnie Raitt, entre outros. E, para melhorar a coisa, foi dele a bateria de uma das músicas que mais gosto de Peter Frampton (“I Can’t Stand it No More”). Com um currículo desses, não é de se admirar a forma com que ele toca essa música de VM. Cheia de rufos, paradas e de passagens suaves, mas que ele segura no braço, com muita firmeza. De novo, uma música num compasso ímpar (3 ou 6 tempos, dependendo do freguês) que soa bem macia. Ela, aliás, tem um lance maneiro que é o 3/4 (6/8) tocado contra o 2/4 (ou 4/4), o que cria um balanço ótimo. Aliás, Oswaldo Montenegro, que de ótimo não tem nada, criou várias de suas músicas nesse clima.

Podcast: http://lomez.mypodcast.com/


Era isso.
abs
Txotxa

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Carlton Barrett (1950 – 1987)




Montar um podcast sobre Carlton Barrett é ao mesmo tempo um clichê desgraçado e uma novidade exclusiva.

O clichê é mais fácil de se perceber, já que a onda do reggae e o estilo de vida jamaicano (parte dele) estão impregnados em nossa cultura. Desde um mendigo da Cracolândia, em São Paulo, até o Luciano Huck (outro tipo de mendigo paulista), todos sabem cantar pelo menos uma música de Bob Marley (e sabem bem quem foi o homem). Por isso, escolher algumas dessas músicas pode dar a impressão de que estou chovendo no molhado, de que fiz uma seleção meio safada. Daí a idéia do clichê.

E a exclusividade vem do fato de que o reconhecimento da arte de Carlton Barrett ser inversamente proporcional ao sucesso das músicas de Bob Marley. Pouco, ou quase nada, se fala do baterista. Sly Robbie, por exemplo, tem muito mais nome e moral do que CB. Tudo bem que o outro é produtor e transita em várias áreas, mas é inadmissível que CB (junto com seu irmão, Aston) seja reverenciado apenas pelos entendidos do assunto.

Por tudo isso, vou tentar aqui homenageá-lo da forma adequada.

Mas antes uma historinha...
No auge da minha indolência juvenil, em 1990, recebi o convite do amigo Beto Bugarim para tocar num projeto de reggae chamado Cravo Rastafari (que, anos depois, viria a se tornar o Maskavo Roots – hoje apenas Maskavo). No repertório de 4 músicas tinha uma dos Slickers (Johnny Too Bad) e 3 de “Bobito” (Jammin’, Stir It Up e, claro, Woman No Cry). Fui lá, tirei as músicas e até que tocamos bem na estréia. Tão bem que, mesmo com apenas essas 4 músicas, tocamos em tudo que é lugar de BsB. Claro que a época ajudou, já que a tal cultura jamaicana ganhava cada vez mais espaço junto aos formadores de opinião de nossa cidade: os playboys.

Bom, o fato é que passei uns bons anos tocando esse som (além daquelas 4 músicas), mas sem nunca entender, de verdade, a grandeza e a peculiaridade dessas baterias. Lembro até de um professor que tive (o único e que durou umas 3 aulas) me explicando a batida do reggae. Ele tocou a levada de “Reggae Night”, do Jimmy Cliff, e passou para próxima lição. Vai entender...

Hoje, eu me considero um cara que tem alguma noção de como se fala essa língua do reggae. Na verdade, achei uma definição no site do curso de alemão Goethe que define bem a minha relação com os vocábulos jamaicanos: “É capaz de compreender e usar expressões familiares e quotidianas, assim como enunciados muito simples, que visam satisfazer necessidades concretas. Pode apresentar-se e apresentar outros e é capaz de fazer perguntas e dar respostas sobre aspectos pessoais como, por exemplo, o local onde vive, as pessoas que conhece e as coisas que possui. Pode comunicar de modo simples, se o interlocutor falar lenta e distintamente e se mostrar cooperativo.” Perfeito.

Bom, mas que diabos essa música tem de tão difícil assim? “Será que fumar 1kg de maconha diariamente e desligar a água do chuveiro por 3 anos não é suficiente para entender o gingado de Trenchtown?”, alguns podem se perguntar. Eu diria que não é o suficiente, apesar de que isso pode até ajudar em termos de andamento :-).

A dificuldade, ao meu ver, é a pulsação. É isso que derruba a maioria dos bateristas que se aventuram por essas terras. Nós estamos acostumados a ouvir o rock, aquele compasso que é uma linha reta, sem sobressaltos, onde o caminho mais indicado é sempre seguir adiante.
Desde Buddy Holly, passando pelos Beatles, até o Nirvana, a pulsação (nem sei se estou usando o termo corretamente) é bem parecida. Independente da velocidade, o 1 no rock (e suas adjacências) tem o mesmo tamanho, a mesma força e o mesmo endereço.

Já no reggae, a batida ganha destaque nos respiros desses tempos (contratempos), e o tempo forte passa ser o 2, que, no estilo one drop, é tocado pelo bumbo. E isso vai contra a noção de backbeat – aquilo que as pessoas instintivamente acompanham com as palmas e que serviu de base para tudo que veio a partir do jazz de New Orleans.

Assim, o desenho na cabeça do baterista muda completamente. Por exemplo, uma pratada no início do compasso já não é tão bem-vinda no reggae quando seria em 99% das músicas pop de hoje. Por isso, eu acho que são poucos os bateristas não-jamaicanos (ou descendentes dessa cultura) que consigam manter essa pulsação com a propriedade que o estilo merece.

Bom, tudo isso para chegar até Carlton Barrett, um dos maiores bateristas de todos os tempos.
A partir da seleção musical abaixo, vou tentar explicar o porquê dessa minha admiração incondicional por esse fabuloso músico.

Ah, lembrando que a lista reúne apenas as gravações de CB com os Wailers. Coisas que ele gravou com Peter Tosh, Ziggy Marley & The Melody Makers, Alpha Blondy ou com os Upsetters ficaram de fora. Achei melhor listar apenas as coisas de BMW, já que são mais fáceis de se achar e mostram muito bem as qualidades de CB.

Vamos ao podcast:
http://lomez.mypodcast.com/


LIVELY UP YOURSELF
Live!, 1975
Essa é uma das melhores baterias que já foram gravadas. A energia de CB é a força-motriz dessa música, e, mesmo mudando a célula da batida a cada dois compassos, ele não atrapalha o arranjo. Muito pelo contrário – a sua fluência faz com que cada parte soe diferente da outra (mesmo não sendo no papel). Alguns dos fills (ou viradas, se preferirem) que ele faz estão na lista dos mais difíceis que já escutei (e que vivo tentando, sem sucesso, imitar). Dá gosto de ouvir uma coisa e saber que ninguém nunca vai chegar perto dessa qualidade.

DUPPY CONQUEROR
Burnin', 1973
Gosto dessa versão por conta da liberdade com que a bateria e a percussão (com as vassourinhas) são tocadas. Numa versão anterior a essa, mais roots, a bateria toca de forma mais tradicional. Essa versão (aliás, esse disco) tem um clima meio funky. Talvez por isso o baixo seja tão preponderante.


TALKIN' BLUES
Natty Dread, 1974
Essa é uma aula de cadência. Gosto muito do início, num clima meio R&B. Parece que essa foi escrita por CB junto com Bob Marley. Coisa finíssima. A forma com que CB abre o ximbau foi assumidamente copiada por Stewart Copeland ao longo de sua carreira. E tocar assim é tão difícil, pq vc deixa o ximbau soar, sem tocá-lo, no meio do compasso, o que te obriga a ter uma concentração (ou talento) dos infernos para atrapalhar o andamento. E Carlton Barrett faz isso com a precisão de um relógio.


RUNNING AWAY
Kaya, 1978
E por falar em controle do tempo, essa música é um perfeito exemplo disso. Um andamento lento, difícil, bem dividido, que seria o pesadelo de qualquer baterista. E aqui, já não falo mais do reggae, e sim de músicas lentas no geral. Vc pode medir a qualidade de um baterista pela forma com ele toca as baladas. São poucos os que tiram de letra esse desafio. E CB não só toca perfeitamente dentro dos limites do BPM, como também faz viradas ao longo das passagens. De novo, uma coisa que só se arrisca a fazer quem tem o dicionário do estilo todo memorizado ou é doido. CB é certamente o primeiro caso.


NIGHT SHIFT
Rastaman Vibration, 1976
Isso é pressão e o resto é brincadeira. Note que o andamento em relação à música anterior não é tão diferente, mas esta aqui é empurrada para frente (melodia e linha de baixo). E isso faz com que a bateria segure a batida na marra. Para ter a idéia, é como se vc sacudisse uma garrafa de 2l de Coca-Cola e deixasse em cima da mesa de cabeça para baixo. É esse nível de pressão a que me refiro. Tanto que CB não usa o prato uma vez sequer – se der uma folguinha a música desanda.

Gosto muito das discussões sobre o verdadeiro “dono” do tempo numa música. Instintivamente, imaginamos que é o baterista o cara com a melhor noção de tempo de um grupo, já que ele é quem tem essa obrigação dogmática. Mas nem sempre isso é verdade. Caras como Ray Charles e Stevie Wonder eram donos de uma noção assustadora de ritmo – certamente, maior do que a de seus bateristas. E nesses casos, os bateristas suavam a camisa para não tomarem uma dura no meio de uma música. Mas mesmo esses fenômenos teriam dificuldade em superar o controle de CB nas linhas de um compasso.


COMING IN FROM THE COLD
Uprising, 1980
Toda vez que toco essa introdução sempre dou uma roubada. Acabo entrando na hora certa, mas nunca soube fazer essa contagem direito. Gosto muito dessa música péla sutileza com que CB toca os pratos nos ataques “No, Dread, no!”. A tendência é meter a mão nessa hora, mas ele toca macio, na altura certa, sem esforço. Outra coisa bem legal é a variação do bumbo ao longo da música.
* Ooops, comi mosca ao incluir esta no hall de músicas do Carlton Barrett. Segue abaixo a correção do colega Leonardo:

Realmente você conhece m pouco dereggae sim. Porém, a música coming in from the cold não foi gravada por Carlton Barrett, e sim por Carlton "Santa" Davis o batera da Soul Syndicate Band. O disco de Bob, Uprising, de 1980 foi gravado com Carly na batera, apenas a faixa um do disco é com Santa.
ESCUTE o disco e verá a pegada que não é de
Carlton.


Taí o gabarito...

RASTA MAN LIVE UP
Confrotation, 1983
E o bumbo também o lance legal dessa. CB começa na batida one drop e já muda para o bumbo nos 4 tempos. Essa música mostra bem a onda do reggae, que descende diretamente do R&B. Não dá, por exemplo, para tocar essa música direto, retona, tipo o Police fez a vida inteira (“Can’t Stand Loosing You”). Ela tem uma onda shuffle, meio redonda, que tem um balanço particular. E isso, aliás, é a dificuldade de se tocar reggae: a batida puxa para o shuffle, enquanto a guitarra corta durona o contratempo. Se não ficar de orelha em pé, o trem descarrilha e a música vai para o saco. Não é o caso dessa gravação, claro....


CONCRETE JUNGLE
Catch a Fire, 1973
Clássico. Esse tipo de batida é bem legal, pq parece que anda sozinha. Pelo andamento, a impressão é que a bateria pode parar de tocar que ninguém vai perceber. E isso dá para perceber nas viradas de CB ao longo da música – ele pára, entra e sai da música sem atrapalhar ninguém. Gosto mais de uma versão dessa música que saiu há uns anos, com a gravação original feita na Jamaica, sem os overdubs do fodasso Chris Blackwell. De qualquer forma, é uma música impressionante.


ONE DROP
Survival, 1979
Talvez uma das músicas mais felizes já compostas por alguém. A letra, até onde entendo, não é tão alegre, mas os instrumentos, a harmonia e as melodias são de outro mundo. Gosto muito do som de bateria desse disco – bem na cara do freguês. E esse som de ximbau é um brilho só. Nota 10!


BAD CARD
Uprising, 1980
Aqui dá para ver bem a idéia do half-time aplicada ao reggae: a guitarra toca o tempo dobrado do ska, e a bateria se mantém na metade do andamento. Isso dá um efeito bem maneiro, empurrando a música para frente para trás. Belíssima composição, mas eu sempre tive a idéia de que a voz de Bob Marley parece numa rotação diferente, meio desafinada.


STIR IT UP
Catch a Fire, 1973
Essa foi a 1ª música que ouvi de Bob Marley & The Wailers. Adoro tudo nela: o timbre, a letra, a melodia, o arranjo. O baixo talvez seja um dos mais marcantes que Aston Barrett já compôs. Essa fórmula de tocar e compor seria levada ao nível de perfeição ao longo dessa década, mas em 73, o ano em que nasci, BMW tocam fácil e cheios de si. Clássico dos clássicos.
* parece que comi mosca de novo. vejam a contribuição de Ras para a postagem:
Olá, grande iniciativa de fazer esse tributo a Carlie Barrett!!! Sou pesquisador da "pegada" deste incrível baterista e gostaria de deixar minha contribuição.Queria fazer uma correção e levantar alguns pontos:1- como o colega disse, Coming in from the cold foi gravada por Carlton Santa Davis, assim como Chant Down Babylon, Ride Natty Ride, Top Ranking, Africa Unite, entre outras. Assim como SO MUCH TROUBLE foi gravada por MICHAEL BOO RICHARDS, baterista que tocou com Jacob Miller, Jimmy Cliff, Wailers (após a morte de carlton) etc. 2- STIR IT UP não foi gravada por Carlie Barrett (VER O VIDEO "CATCH A FIRE" QUE MOSTRA COMO FOI FEITA A GRAVAÇÃO E MIXAGEM DO DISCO DE MESMO NOME).Bless!!!
(vou ter que assistir de novo o Classic Albums do "Catch a Fire")

Era isso.
abs
Txotxa