terça-feira, 12 de junho de 2007

Ringo Starr



Toda banda, além do baterista, tem sempre um cara que toca (ou cisma em tocar) bateria. Normalmente, esse é o cara que nos deixa de orelha em pé, que reclama de alguma batida, ou que, pela simples presença, nos ameaça constantemente com seu olhar crítico.

Na maioria das vezes, os dois (baterista e quase-baterista) acabam se entendendo e seguindo em paz ao longo dos ensaios. Já em outros casos, o baterista acaba se tornando refém das opiniões desse quase-baterista, deixando de lado os seus instintos musicais para tentar agradar o colega de banda.

E o que fazer quando esses quase-bateristas da sua banda são George Harrison, John Lennon e, especialmente, Paul McCartney? Bem, Ringo Starr conseguiu, sem maiores confusões, não só agradar seus colegas geniais (que tinham noções bem avançadas de como deveria soar a bateria), como também criar um estilo que, de tão particular, até hoje não é completamente entendido pelo grande público.

Como deu para perceber, vou falar hoje sobre Ringo Starr, baterista da maior banda de todos os tempos. Já aviso logo que não sou betleamaníaco e que não sei quase nada sobre as lendas relacionadas ao grupo. Vou tentar, da forma mais honesta possível, listar algumas características de RS que me fazem gostar cada vez mais da figura.

Quando eu estava no 2º grau, era quase um sacrilégio elogiar o Ringo. Para todos os efeitos, ele era apenas um cara sortudo, com talento mediano, que estava no lugar certo, na hora certa. Nada além disso. Por isso, posso dizer que comecei a respeitar o Ringo a partir da opinião de outros bateristas que eu gostava, já que não entendia a moral que ele mantinha junto à comunidade baterística internacional. À medida que o tempo foi passando, fui conhecendo melhor os Beatles e pude mapear algumas peculiaridades da bateria de RS.

Por exemplo, ele era canhoto, mas tocava numa bateria de destro. E para piorar, ele começava as viradas com a mão esquerda. É mais ou menos como um jogador de futebol que chuta com a direita, mas carrega a bola e dribla com a esquerda. Vai tentar marcar em cara desses, ou tirar (de verdade!) as suas baterias?

Outro destaque da arte de Ringo Starr é a sua capacidade de acertar (e carregar) o tempo de uma música com uma consistência assustadora. Até hoje, sua bateria toca sempre no andamento certo, sempre no lugar certo do compasso. Já falei algumas coisas neste blog sobre bateristas que tocam na frente e atrás da batida, mas o Ringo era (ou melhor, é) um cara que sabia instintivamente o melhor lugar para as suas baquetadas. E como ele tocava SEMPRE o que a música pedia, cada coisinha a mais soava, literalmente, como música aos ouvidos, tamanho o seu bom gosto.

Se tivesse que resumir a sua essência baterística diria o seguinte: um cara que, a partir do alto entendimento que tinha das batidas de Chuck Berry, de Fats Domino e do R&B norte-americano, conseguiu impor, mesmo nos momentos mais vanguardistas de seus colegas, a melhor tradição do rock’n’roll.

Quando seu filho, o tremendo baterista Zak Starkey, começou a se interessar mais seriamente pelo instrumento, Ringo, no alto de várias décadas como superstar mundial, lhe ensinou duas coisas: a primeira, a batida mais simples que alguém aprende a tocar na bateria (o velho e bom 4/4, com o bumbo no 1 e 3, e a caixa no 2 e 4); a segunda, uma variação mais simples ainda dessa batida. E disse: “Com isso, vc consegue se virar como baterista profissional. O resto, é por sua conta”.

Antes de irmos para o podcast, queria dizer que, para mim, é impossível escrever qualquer coisa mais original sobre a obra dos Beatles. Portanto, para não correr maiores riscos, vou seguir o meu “feeeling”, e que me perdoem os especialistas.

Podcast: http://lomez.mypodcast.com/

MAGICAL MYSTERY TOUR
Magical Mystery Tour, 1967
Gosto muito da energia da bateria, que já começa com o pé no acelerador. Outra coisa bem legal é a passagem para parte mais lenta, quando RS toca a caixa com as duas mãos – essa batida é uma de suas assinaturas.

BOYS
Please Please Me, 1963
Sua voz nasalada é imediatamente reconhecida em qualquer lugar do mundo. Escolhi essa música pelo balanço e pelo som da bateria. É um ótimo exemplo de como RS entendia (e mantinha) os andamentos.

TICKET TO RIDE
Help!, 1965
Note como a bateria vai mudando a célula ao longo da música. Ringo faz isso de uma forma bem sossegada, sem querer chamar a atenção. Esse é exemplo de como alguém pode tocar para música e ainda contribuir com um “algo mais”.

TAXMAN
Revolver, 1966
Já toquei essa música várias vezes, mas sempre apanho desse bumbo. Nunca sai do jeito certo, do jeito de Ringo.

RAIN
Past Masters 2, 1966

Essa música sempre aparece em qualquer lista das melhores baterias de RS. Não podia deixar de fora, principalmente pela forma como que ele vai “atravessando” a música, sem nunca atrapalhar o baixo (e que baixo!) de Paul McCartney.

COME TOGETHER
Abbey Road, 1969

Uma coisa meio complicada em relação ao aspecto orquestral de sua bateria (principalmente nessa música) é saber de quem partiu a idéia. Veio do Ringo, ou ele “apenas” executou um conceito pensado por John Lennon e George Martin? Não conheço Beatles o suficiente para saber a resposta (aliás, nem sei se a pergunta procede). Só sei que a execução é espetacular. Para essa música, o som abafado dos toms funcionou perfeitamente.

WHILE MY GUITAR GENTLY WEEPS
White Album, 1968
Eu considero essa música uma das mais difíceis dos Beatles (e uma das melhores). A bateria começa apenas com bumbo e ximbau (num andamento complicado, que soa arrastado, mas que está sempre na frente). Na segunda estrofe, a batida entra, mas ainda de forma incompleta: Ringo toca a caixa e o bumbo, deixando de fora a mão da condução – e isso é uma coisa muito difícil de se fazer sem perder o tempo. Eu mesmo, quando toco essa música, sempre faço com a mão direita a frase dos blocks (do canal esquerdo) para não me perder no compasso. Bom, chega o refrão e RS traz de volta o ximbau e dá aquele “colorido” que faltava. Faltava, mesmo? Depois disso, a música segue macia nas mãos de Eric Clapton...

CAN'T BUY ME LOVE
A Hard Day's Night, 1964

Essa batida tem todo o clima das músicas de Chuck Berry, com um clima de R&B mais rápido e uma pitada de shuffle. Gosto muito da forma com que Ringo toca essa música, sempre colando e pontuando com o baixo. Uma coisa engraçada em 99,9% das versões que ouvi dessa música é que os bateristas sempre seguem a guitarra no refrão, acentuando na hora do “Can’t Buy Me Love”, enquanto Ringo segue firme e forte com o baixo, criando uma das bases mais sólidas que os Beatles já gravaram.

IN MY LIFE
Rubber Soul, 1965

A mágica da nota certa, no lugar certo e na hora certa. O que fazer quando um cara da sua banda chega com uma música dessas e pede para vc colocar a bateria? Eu, por via das dúvidas, ficaria quietinho, esperando que alguém (de preferência o compositor) sugerisse alguma coisa, só para não correr o risco de atrapalhar uma obra-prima. Não sei se foi isso o que fez Ringo, mas a sua levada (ou não-levada) de ximbau é fascinante (pela simplicidade e pela criatividade). Além disso, acho sensacional a condução na cúpula do prato, na hora do refrão, quando ele toca junto com a caixa.

REVOLUTION
Past Masters 2, 1968

Aqui, de novo, a dificuldade de tocar um R&B desse nível. E de novo, tocando sem a mão da condução. Outra coisa que chama a atenção é a consistência de Ringo com a batida – repare como o bumbo toca sempre da mesma forma, com a mesma força. Isso é para quem domina a bateria e não se intimida numa gravação.

CAROL
Live at the BBC, 1963
Não poderia deixar um cover de Chuck Berry de fora. Gosto do bumbo dessa versão, que vai acentuando as batidas, sem precisar tocar o tempo todo. Ouvindo essa versão, dá até pena, em termos de cozinha, da versão dos Stones :-). Outra coisa legal é que George Harrison chega a tocar as mesmas frases da guitarra de Chuck Berry.

SHE SAID SHE SAID
Revolver, 1966
Se eu tivesse que escolher uma música que melhor representasse a bateria de RS, eu escolheria essa. Tem de tudo: cadência perfeita, swing, viradas estranhas de mão esquerda que cabem perfeitamente na música e dinâmica exemplar. Se um dia eu o conhecesse, iria pedir para me mostrar essa batida.

PAPERBACK WRITER
Past Masters 2, 1966

Que energia tem essa música! A batida de RS dá todo o suporte para o baixo e para a guitarra (que são fenomenais). Gosto muito também do som dessa bateria. Eu, particularmente, aumentaria um pouquinho a bateria na mixagem (hehehe).

THE END
Abbey Road, 1969
O único solo de RS com os Beatles? Não sei... Só sei que isso soa muito bem na música (e no disco).




Era isso.
abs
Txotxa

13 comentários:

F3rnando disse...

Um cara subestimado. "Ticket To Ride" acaba com qualquer sombra de dúvida à respeito das habilidades de Mr. Starkey. Além disso a voz dele é o "blueprint" de "With A Little Help From My Friends" e a levada de "Tomorrow Never Knows" é coisa do além.

Ricardo Cury disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ricardo Cury disse...

Yeahhhhhhhhhhhh, Txotxa, valeu pela alma lavada.
Sem falar nas composições dele, Don't pass me by, Octopus...

Apenas uma informação-resposta: o solo de The End é mesmo o único solo de RS com os Beatles, inclusive, na biografia de McCartney é narrada uma cena que Ringo foi perguntado sobre o que achava de solos de bateria e por ter resposndido "odeio", teve sacramentada a sua entrada na banda.

Anônimo disse...

Gostei muito de saber da capacidade de Rongo Star, que sempre foi tido como uma ovelha negra nos The Beatles, e agora com a sua análise percebo que não havia apenas 3 gênios musicais, mas 4...e pela lógica se ele deu suporte para músicos como harrison, lennon e mccartney não poderia ser pouca coisa...a verdade revelada, o cara é foda também. E em cada música registrou o seu estilo.
Abraços,
Nino.

Naja Najito disse...

Me amarro no Ringo. Durante um tempo, fiquei obcecado pela batida de Strawberry Fields Forever (me amarro naquela bateria com efeitos do final da música). Acho legal também a variedade de batidas que os Beatles apresentaram ao longo da carreira (Ramones também é assim(rs)).
Acho legal que, nos seus posts, vc cita muito o 2º Grau, época do auge do metal. Ou seja, quem tocava bem guitarra era Joe Satriani e Steve Vai, no baixo, Billy Sheeham e, na bateria, a galera do metal curtia o Neil Peart - que, segundo a lenda, segurava uma moeda na parede só com as baquetas.

F3rnando disse...

Não é o baterista daquela banda alemã Rage que faz esse truque da moeda??

Txotxa disse...

f3rnando, com certeza. só não sabia essa do baterista do Rage;

cury, escrevi pensando em vc mesmo. valeu pela informação;

nino, obrigado pela visita. a 1ª vez que eu ouvi uma música dos beatles foi contigo e com o tutu, há umas boas décadas atrás;

naja najito, falou e disse. o 2º grau, para a nossa geração, foi a época do metal.

Naja Najito disse...

Já divulguei vários mitos errados do metal na época do colégio, como, por exemplo, o de que o Andreas Kisser, do Sepultura, teria vindo do clássico. Hoje posso ver que, apesar de ser um guitarrista eficiente, a influência do erudito nos riffs dele é próxima a zero.
Isso me faz lembrar aquela velha música, com um belo refrão: METAL, metal, METAL, metal, METAL, metaaaaaaaal.

Anônimo disse...

Confesso que não sou muito fã dos besouros ingleses, mas gostei do que li.
Abraços,
Fabio Lino

F3rnando disse...

Mas o Andreas estudou realmente violão clássico, ele toca até coisas complicadas do Egberto Gismonti (que não é propriamente clássico, mas anda bem perto). Ele nunca foi músico de câmara mas tem formação.

Naja Najito disse...

Obrigado pela informação, Fernando. Eu ouvi essa lenda na época do colégio, espalhei, mas achava que não era verdade. Eu lembro que, no Beneath the Remains, tem uma música que começa com um trecho de violão clássico, mas não sei se foi o Andreas quem tocou.

Bruno Prieto disse...

Txotxa, o Breno me enviou o link do seu blog. Li todas as resenhas de uma tacada só. Mestre, você escreve tão bem quanto toca. Continuo seu fã e agora acompanharei seus insights sobre música.
Abraços e paz.
Bruno Prieto

Txotxa disse...

Linues, campeão, valeu pela visita.


Bruno, meu querido, que legal a sua presença. Espero que tenha gostado da seleção. Grande abraço para vc.