sábado, 19 de maio de 2007

Mitch Mitchell


As questões em torno da figura do crítico musical são sempre complicadas. Muitos defendem a idéia de que apenas um músico possui o conhecimento necessário para comentar o trabalho de outro colega. Outros acreditam que apenas o não-músico (jornalista, na maioria dos casos) consegue manter o devido distanciamento para analisar uma obra musical.

A minha posição é a seguinte: acredito no bom senso e na busca sincera pelo conhecimento musical, independente de se tocar ou não um instrumento. Porque já vi muito músico bom falar asneira por falta de um senso crítico mais apurado e racional. Da mesma forma, os jornais e revistas estão cheios de idiotas falando água sem nenhuma propriedade aparente.

Bom, isso tudo para deixar mais claro o que vou dizer agora sobre a arte de Mitch Mitchell (aliás, isso serve para todos os textos que já apareceram neste blog): não é possível entender a bateria de MM sem tentar (ênfase no tentar) tocá-la. Não adianta ler todas as coisas sobre as gravações do Jimi Hendrix Experience, estudar as partituras (se é que existem) de suas batidas, ou assistir aos vários vídeos da época. Nada disso dá a real dimensão da arte desse baixinho nervoso que acompanhou durante alguns anos (os principais) um dos maiores fenômenos que a música já viu.

Eu já toquei várias (várias, mesmo) músicas do grupo e nunca cheguei perto da dinâmica de MM. Talvez por seu profundo interesse pelo jazz, Mitch M. conseguia tocar rápido e suave, com viradas ferozes, dando sempre a impressão de que estava improvisando à medida que a música acontecia. Não era um baterista tradicional de rock. Não estava muito ligado na marcação do tempo, nem na cadência da batida. Ao vivo, então, era um Deus nos acuda (no bom sentido).

Se compararmos os dois principais bateristas de JH (Buddy Miles e MM), vamos ter visões diametralmente opostas sobre ao conceitos de ritmo. BM era uma locomotiva de carga, firme e compassada, focada no percurso. Já MM era um carro esporte voando baixo pela auto-estrada, cortando todo mundo e chegando, sempre, inteiro no destino.

Veja bem, não quero dizer que MM era ruim de tempo. Pelo contrário, mas o tempo para ele era uma coisa mais maleável, que podia (e devia) variar de acordo com a música. Muito da sua noção de ritmo era ligada à guitarra de JH. Tanto que muitas das sessões de gravação começavam apenas com os dois.

Vou falar mais das características de MM como baterista a partir das músicas do podcast de hoje.


Podcast: http://lomez.mypodcast.com/



MANIC DEPRESSION
(Are You Experienced?, 1967)
Essa batida é sensacional! Numa música de 3 tempos, MM consegue criar um clima quase mântrico (existe essa palavra?). A dinâmica com que ele toca o tom e os pratos é muito difícil de se repetir. Acredito que o tamanho mignon de MM acabou definindo o volume de sua bateria. Junte-se isso às técnicas de gravação da época, e temos um som impossível de ser reproduzido. Num dos muitos discos em homenagem à música de JH, lembro bem de uma versão de Manic Depression tocada por Jeff Beck e Seal. Adivinhe a única coisa que ficou devendo?

FREEDOM
(The Cry Of Love, 1970)
Que música f... O bumbo meio deslocado na estrofe é muito doido (mas funciona). Essa formação com Billy Cox no baixo é impressionante, pq o baixo, finalmente, ancora a música. Qualquer baterista que consiga tocar esse arranjo merece o respeito de todos.

KILLING FLOOR
(Jimi Plays Monterey, 1967)
Bem, o que fazer depois de uma introdução de guitarra dessas? Acho que MM segurou bem o rojão e ainda vitaminou o arranjo. Note como ele chega a ficar uns 3 compassos simplesmente solando em cima da música. Já ouvi algumas versões desse clássico de Howlin’ Wolf, mas nenhuma chegou perto desse nível de energia (nem mesmo as de JH). Esse show mostra a banda no auge. Detalhe para a vozinha de Brian Jones na apresentação.

SHE'S SO FINE
(Axis: Bold As Love, 1967)
Música do reclamão Noel Redding (ele também canta). Essa introdução de bateria é perfeita para tirar onda na hora da passagem de som. Gosto muito da forma solta com que MM toca a música. E que solo de guitarra, hein? A música tem um estilo clássico do rock dos anos 60.

LONG HOT SUMMER NIGHT
(Electric Ladyland, 1968)
O meu medo em escolher essa música é que ela faz parte de um disco muito zoneado, do qual participaram desde Steve Winwood e Brian Jones até um motorista de táxi. Por isso, a chance de MM não ter tocado essa bateria é real. Mas, pelo o que ouvi e li a respeito, eu continuo apostando em sua execução. Isso foi o máximo que ele conseguiu chegar perto de uma batida funky. Também com uma estrutura dessa, poucos conseguiriam dar uma consistência maior. Considero essa uma das melhores gravações (apesar do som) de JH.

REMEMBER
(Are You Experienced?, 1967)
De novo, a dinâmica. Ele toca a música inteira na caixa e nos tom, não usa nem o ximbau e nem o prato em nenhuma marcação. De novo, mais uma que eu tentei tocar e levei uma surra. Li que JH havia se inspirado em Otis Redding para compor essa música. Tem tudo a ver, mesmo.

UP FROM THE SKIES
(Axis: Bold As Love, 1967)
Aqui temos o jazzista MM. Ele mostra que tem o controle das vassourinhas, mas não se contenta em marcar a pulsação para os colegas. Gosto muito da forma como ele faz viradas em diferentes tempos e climas ao longo dessa música. Música excelente de um disco excelente. Esse som de bateria eu considero algo bem perto da perfeição.

CROSSTOWN TRAFFIC
(Electric Ladyland, 1968)
A música começa com o pé na porta. Nenhuma das versões que já ouvi dessa música chega perto do clima funky dela. Note como a bateria de MM está sempre um pouco atrasada em relação à batida da estrofe. Se essa gravação fosse realizada por Buddy Miles, certamente, seria mais conhecida no meio baterístico (não sei...).

HIGHWAY CHILE
(Are You Experienced?, 1967)

Sempre falo disso em quase todas as postagens: não é nada fácil tocar essas batidas meio R&B, meio shuffle. Ainda mais quando ela vai mudando o tempo todo, como nesse exemplo. Acho a execução de MM impecável, mesmo com o erro engraçadão que acontece no solo de JH. Note no minuto 26’22” do podcast com a caixa some da música por uns dois compassos. A baqueta dele deve ter caído, ou qualquer coisa do tipo. Mas a bateria está tão em cima, que eles acharam (com razão) melhor nem mexer.

BOLD AS LOVE
(Axis: Bold As Love, 1967)
Balada belíssima com letra doidíssima. Gosto muito da forma como MM vai crescendo com a bateria ao longo da música. Considero a batida meio suspensa do refrão a mais clássica da cozinha Mitchell/Redding. O Pretenders fez uma versão dessa músicas, mas não conseguiu o mesmo balanço – e olhe que o baterista deles é sensacional.

CAN YOU SEE ME
(Jimi Plays Monterey, 1967)
De novo, o pé na porta ao invés da campainha. Do mesmo impressionante show de Killing Floor. Nem tenho muito o que dizer, apenas que se eu estivesse escalado para tocar depois dessa turma, fingiria uma dor de barriga e voltaria para casa. Sei que o The Who tocou no mesmo festival (não sei se foi na mesma noite), mas a parada deve ter sido feia...

SPANISH CASTLE MAGIC
(Axis: Bold As Love, 1967)
Talvez pelas paradas da música, MM não tenha alucinado tanto como de costume. Note como a batida dessa música é a mesma que de Bold As Love. Esse clima é puro funky. Experimente acelerar o andamento e vc terá uma base para qualquer música de James Brown. Gosto muito da forma bem estruturada dessa bateria, principalmente o bumbo nas estrofes.

FIRE
(Are You Experienced?, 1967)
Se tivesse que escolher apenas uma músicas para mostrar o quanto MM era sensacional, escolheria essa. Para cada uma das paradas que a música faz, a bateria vem com algo novo e extraordinário. Nenhuma banda (ou baterista) conseguiu chegar perto desse misto de agressividade e balanço.

MAY THIS BE LOVE
(Are You Experienced?, 1967)
Para encerrar, uma experiência de estéreo bem bacana. Note como a bateria vai mudando de canal ao longo da música. Sensacional...

valeu
Txotxa

14 comentários:

THE MOVIE-GOER disse...

Muito bem escrito, Seu Nasc!
Deu vontade de ir lendo o q vc escreveu e ouvindo as partes que vc mencionou das músicas! Deu pra passar bem a admiração q vc tem pelo MM(como vc mesmo diz!)

Uma aula de conhecimento musical e de texto também!
Parabéns!

Anônimo disse...

Era como dizia um guitarrista jazz de Brasilia, tambem um grande amigo meu: o Toninho Maia.

Ele dizia que sabia tocar quase todas as musicas do Hendrix, isso era facil. Porém, o swing do negão não dava para fazer igual.

Hendrix tinha nuancias e cacoetes estilosos impossiveis de se imitar, coisa que não dava para colocar na partitura.

Com o MM deve acontecer algo parecido. Acredito eu.

F3rnando disse...

Hendrix foi um cara de sorte (fora o talento). Se não tivesse achado um baterista e um baixista (na verdade um guitarrista que jogou a toalha depois de vê-lo em ação) à altura dele teria levado uns cinco discos pra emplacar. Esses três discos do Experience são discoteca básica, mas o "Axis" tem um lirismo e um soul que faz dele o preferido na coleção aqui de casa.

Txotxa disse...

JR, valeu a presa, fish!


Eremilton, realmente, acredito que o estilo de JH deve ser muito peculiar. abs e obrigado pela visita.


F3rnando, com certeza os dois foram importantíssimos para a ceitação de JH nas paradas britânicas (depois, dos EUA). E o Axis... é mesmo um disco impressionante.
obrigado pela participação.
abs

Anônimo disse...

E aí velhote!

Muito bom! Sempre que ouvia as músicas do JHE eu ficava meio assustado com a bateria - principalmente no caso de Fire, que é daquelas músicas impossíveis de ouvir baixo. O baterista pisa no acelerador e vai embora.

Abraço

Alan

Txotxa disse...

com certeza, Fish.
MM pisa no acelador com o seu pezinho 37 e não pára mais.

abração

Anônimo disse...

Fala safado!
Está muito legal essa parada.
Abraços,

Fábio Lino

Véio, vc viu a parada do show na vb?

Txotxa disse...

Linus, valeu, animal.

silas disse...

valeu pelo texto agradável, cara. MM é sonzeira de ótima qualidade, TJHE foi uma banda sensacional e o Axis: Bold as Love é de fazer o queixo cair e não voltar mais ao lugar hehe
Salve!

Txotxa disse...

Silas,

Obrigado pela presença.
abs

silas disse...

Por falar em Mitchell, você sabe algo a respeito das gravações dele com o Muddy Waters, em 70, 74...?
Gostaria de saber se foi um convite em homenagem a Hendrx (sei lá, pelo respeito, pelo simples fato de Hendrix ter aprendido a manusear a guitarra com músicas do Waters) ou se ele curtia muito o MM hehe
até mais!

Txotxa disse...

Silas,

Eu acho que essa gravação faz parte daquela série grande da Chess Records, chamada London Sessions. Howlin Wolf, Bo Diddley, Chuck Berry, entre outros, fizeram parte desse esquema, que consistia, bascicamente, em um artista das antigas norte-americano com uma banda formada por ingleses (mais jovens) fãs desse cara. Como o MM era conhecido como um bom baterista , deve ter sido chamado para a sessão. Mas até onde sei, não havia nenhum clima de homenagem ao Hendrix.

abs

Txotxa disse...

Silas,

Eu acho que essa gravação faz parte daquela série grande da Chess Records, chamada London Sessions. Howlin Wolf, Bo Diddley, Chuck Berry, entre outros, fizeram parte desse esquema, que consistia, bascicamente, em um artista das antigas norte-americano com uma banda formada por ingleses (mais jovens) fãs desse cara. Como o MM era conhecido como um bom baterista , deve ter sido chamado para a sessão. Mas até onde sei, não havia nenhum clima de homenagem ao Hendrix.

abs

Anônimo disse...

Aprendi muito