Vou fazer aqui uma analogia bem safada: imagine que o tempo de uma música é um cavalo selvagem, daqueles indomáveis, que levam uma eternidade para serem enquadrados no esquema da sela e do cabresto. Ao longo dos anos, vários bateristas conseguiram controlar esses animais. A maioria, eu penso, apelando sempre para o chicote (ou metrônomo). Esse processo é realmente eficaz, mas sempre nos deixa com aquela sensação de que a qualquer momento o bicho-tempo vai nos dar um coice na cara e sair em disparada.
Brincadeiras a parte, queria falar hoje de um baterista que conseguiu amansar a fera do tempo sem precisar levantar um dedo sequer. Esse músico se chama Bernard Purdie.
Tive a oportunidade única de entrevistá-lo para o meu projeto final de graduação. Estava tão apavorado diante dele, que nem me lembro do que perguntei. Apesar disso, o resultado foi surpreendente para mim, pois havia lido coisas a seu respeito que indicavam sempre uma certa malice, um excesso de ganância e uma falta de educação. Mas nesse dia, BP me tratou com paciência, cordialidade e uma certa camaradagem. Tive sorte...
BP é considerado um dos bateristas com mais gravações de sucesso no currículo. Nos anos 60 e 70 (principalmente), 1 em cada 5 hits das paradas de R&B norte-americana tinha a batida de Bernard na fita. Ele já gravou com gente do naipe de Aretha Franklin, Steely Dan, Marvin Gaye, B.B. King, Issac Hayes, Miles Davis (isso mesmo!), Quincy Jones, Roberta Flack, Nina Simone, Cat Stevens, entre outros.
E é aí que começa um pouco da polêmica sobre os seus feitos. Por exemplo, ele jura de pé junto que gravou a maioria das baterias dos Beatles nos primeiros anos de EUA do grupo. Isso nunca foi provado, e eu duvido muito que vá ser algum dia, já que podemos ouvir as particularidades de Ringo em todos esses discos.
Outra coisa que ele faz muito bem é o marketing pessoal. Hoje, ele é conhecido como o criador do estilo acid jazz (o que quer que isso queira dizer) e faz questão de lançar discos com esse título. Nos anos 70, quando gravou com o Steely Dan, a dupla Fagen e Brecker não entendia nada quando ele colocava ao lado da bateria, no estúdio, um cartaz gigante dizendo Bernard “The Hitmaker” Purdie.
Bom, deixando de lado essas (e outras) polêmicas, BP é um dos gênios da bateria. Possui um senso rítmico tão natural que passa a idéia de que a coisa é muito mais simples do que parece. Seu toque é firme e poderoso, mas não ataca os ouvidos e nem atrapalha os outros instrumentos. Ele consegue tocar nos andamentos lentos (mais difíceis) com a mesma desenvoltura que comanda uma banda de 15 instrumentos a 1000 BPM. E o seu backbeat (aquilo que as pessoas instintivamente acompanham com as palmas) é um dos mais consistentes da história da música.
Para encerrar, mais uma historinha...
Logo nos meus primeiros anos de bateria, tinha um primo meu que almoçava lá em casa todos os dias. Como eu gostava muito dele, a gente ficava conversando sobre várias coisas enquanto a comida assentava. Numa dessas conversas, ele tentou me convencer a largar as baquetas, já que, com a expansão da bateria eletrônica (programada), os bateristas estariam com os dias contados. Mesmo sem entender bem o porquê, sabia que ele estava falando asneira.
Se na época eu conhecesse Bernard Purdie, poderia calar a boca do primo falastrão simplesmente mostrando algumas batidas do “Faraó do Funky”. Sério, mesmo depois de tantos avanços na área dos ritmos eletrônicos, ninguém chegou perto do swing puro de BP. A prova disso é que caras modernos como Beck nem perdem tempo tentando programar as batidas de BP: vão direto na fonte, copiando e colando (e no caso do Beck, dando os devidos créditos).
Vamos à seleção de hoje:
RESPECT
Aretha Franklin (Aretha Live at Fillmore West, 1971)
esse é um bom exemplo de como Purdie “empurra” a banda a todo vapor. gosto muito da parte em que a música dá uma abaixada para Aretha F. saudar o público (é a 1ª música do show). eu roubei de Purdie o jeito de acentuar a última batida antes de a música cair na dinâmica.
MEMPHIS SOUL STEW
King Curtis (Live at Fillmore West, 1971)
essa gravação é do mesmo show acima, com a banda de apoio de AF criando o clima de abertura. e que banda! é como se fosse o dream team da soul music dos anos 70. não vou listar os nomes, já que King Curtis (sax e diretor musical) vai apresentando o pessoal ao longo da canção. a música é um clássico que dá a receita de como preparar um autêntico “caldo soul de Memphis” (mais ou menos assim). outra coisa que tento copiar de BP é o ximbau que ele faz nessa música.
THE CAVES OF ALTAMIRA
Steely Dan (The Royal Scam, 1976)
aqui BP é colocado à prova pelos caras mais chatos para gravar que já existiram: Donald Fagen, Walter Brecker e o produtor Gary Katz. já li várias coisas sobre esse time. eram caras meticulosos ao extremo, que não toleravam (no caso dos bateristas) qualquer variação de tempo ou de dinâmica. já vi grandes bateristas dizerem que a coisa era feia com esses 3 – nenhum detalhe passava despercebido. mas o mais assustador é que BD gravava tudo de 1ª, super rápido, enquanto eles ainda acertavam o som da bateria.
essa música é um exemplo de como ele entendia o tempo como ninguém.
ROCK STEADY
Aretha Franklin (Young, Gifted and Black, 1971)
clássico dos clássicos. isso é o gabarito para qualquer coisa que queira soar funky. o baixo, a percussão, o órgão, os sopros, a voz, tudo se encaixa perfeitamente. a parada de bateria é uma coisa de outro mundo. e de novo, o ximbau...
SPANISH HARLEM
Aretha Franklin (Single, 1971)
mais uma de AF (nunca é demais, né?). me amarro muito nesse arranjo. é engraçado que eles tentaram dar um clima meio hispânico, mas não conseguiram deixar de lado a batida sólida e funky da bateria e do baixo. preste atenção na cadência da bateria. ouça como ele toca o tempo todo, com várias notas em vários tambores, mas não perde nunca o balanço.
HOME AT LAST
Steely Dan (Aja, 1977)
essa batida é conhecida como Purdie Shuffle. no documentário da gravação desse disco, BP explica, com um certo desdém e malice, que os Steely Dans não sabiam bem como queriam a batida. foi quando Berrnard disse: “vou fazer o Purdie Shuffle e vcs vão ficar mais que satisfeitos”. isso é que é autoconfiança. essa batida, eu acredito, deve ter influenciado bastante a bateria de “Fool In The Rain”, do Led Zeppelin.
ATTICA
Bernard "Pretty" Purdie (Purdie Good, 1971)
aqui uma das versões da banda de Purdie. a música é bem contagiante. a bateria já é bem mais presente do que nas gravações em que BP apenas “acompanhava” os outros.
Podcast: http://lomez.mypodcast.com/
abs
Txotxa
10 comentários:
Apesar de já adorar Aretha Franklin, eu não tinha a menor idéia de quem era o Purdie antes de te conhecer. Foi um privilégio te acompanhar naquele show na praça de alimentação do conjunto nacional, de graça, (acreditem se quiser!). Faltou falar do chapéu de palha que ele usava e talvez colocar alguns trechos da entrevista "exclusiva" que você fez. Lembro que ficou muito legal. No dia, não havia nenhum jornalista presente, nem do Correio, inacreditável! Aposto que você não guardou o arquivo?!
Txotxa, entendo pouco de música, de bateria menos ainda, mas essas histórias que você conta me criam um interesse imenso pelo tema e por escutar o podcast - lendo música a música! Que maravilha!!
Obra maestral!
Obrigado!
jórgia,
perdi a fita! e se não fosse vc, certamente nem teria feito a entrevista.
tiger,
sua opinião vale mil para mim.
eu que agradeço, meu querido...
Cara, sensacional!!!
Esse foi o mais foda(até agora)
Bom demais!
Alegrou minha tarde
valeu, mr. érico.
vou tentar o pique...
abs
Cara gente boa esse seu primo, hein Txotxa?:))) Como dizia aquele jargão do "primo rico e primo pobre": Primo vc é pandego!
esse quadro era sensacional, f3rnando. "mas primo..."
Aí Ciço,
Curti o tal do Purdie. Principalmente a história do cartaz dele próprio no estúdio. O cara só faz isso se for muito foda...E pelas músicas que você colocou no podcast dá pra sacar que um cartaz é pouco. Grande aula meu velho.
Alan
Iça maneiro,
Valeu pela visita! Com certeza o caboclo era fora do comum.
grande abs
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